Samaín, Abundância e Respeito
- Rita Roquette

- 28 de out. de 2016
- 8 min de leitura
Atualizado: 31 de out.

É com a casa cheia que vos escrevemos neste dia especial, casa esta povoada de castanhas, a secarem para serem piladas, sementes de funcho a secarem ao lado das passas, cogumelos, frutos das roseiras, flores de milefólio... É nesta altura do ano que a ideia de paraíso terreno é vivida na sua irrefutável abundância, tão acessível às nossas mãos, ao cuidado de quem se passeia por bosques, pomares e jardins,
Agora é hora de recolher. Já lá vai a euforia do Verão, o rastilho da vontade de viver, prevêm-se os meses de frio e escuridão que nos aguardam, o que nos pode trazer um quê de hesitação e insegurança.
Em tempos não tão antigos, agora estávamos todos a preparar as colheitas com a ajuda da sabedoria dos nossos antepassados, confiando que a forma como estes o fizeram sempre lhes garantiu um estômago minimamente aconchegado durante o Inverno.
Dá trabalho mas o conforto é imenso.
Muitas Culturas, o Mesmo Rito
Estamos a aproximarmo-nos do Dia de Todos os Santos, o Dia de los Muertos, do Halloween, do Akelarre, do Samaín: o festival que marcava o início do ano dos Celtíberos, que por esta altura à volta da fogueira festejavam e levavam o calor de estar vivo ao rubro para que o pudessem transportar até suas casas e o prolongassem até à Primavera.
Não é um só dia como nos fazem acreditar aqueles que não têm tempo ou vontade para se dedicarem às colheitas, ou pior um black friday qualquer, é sim, um período de tempo, uns 3 dias antes e depois, mesmo ali no meio do caminho entre o Equinócio de Outono e o Solstício de Inverno.
Neste hoje em que algumas datas perderam o seu valor é reconfortante que ainda se levem flores às campas dos nossos que já partiram, ou que se esculpam abóboras e lhe coloquem o pavio a arder bem no seu centro, desta forma ainda conseguimos recriar um tempo/espaço para alumiarmos o exemplo de vida dos que nos deram vida e nos ensinaram a viver.
Magustos, Fogueiras e Lareiras
Os magustos desta altura são a representação mais real da tradição que nos foi deixada, do Festival de Fogo celta, ou o Magnus Ustus romano - a Grande Fogueira - que era acesa para nos recordarmos e respeitarmos os que já caminharam nesta vida, o ano que passou, as vidas que fomos, as várias versões com que nos mascaramos e despimos... O ponto central desta celebração é o Fogo, tal como noutros festivais celtas que o incluíam, as castanhas ou bolotas eram apanhadas para ser dadas ao lume como forma de oferendas, como agradecimento pela sua orientação e havia um quê de receio que esta altura impunha e que naturalmente como espécie temos, tanto da escuridão, como da escassez.
Depois da Grande Fogueira acendida, cantava-se, faziam-se preces conjuntas e um representante de cada família levaria para casa uma acha ainda em fogo que perpetuaria a visão e os desejos partilhados ali e assim sabiam que colectivamenteo trabalho interior estaria a ser feito mesmo que em tempos de quietude.
É com o respeito que estes tempos impunham que me tenho sentido, neste secar das castanhas para seguir a tradição dos meus pedaços transmontanos. Durante mais de 8 dias a secar as castanhas um pouco acima do fogão a lenha, revirá-las todos os dias, a tentar perceber a precição de quem sente a humidade com as mãos, elas estão agora estaladiças o suficiente para poderem ser pisadas e descascadas efectivamente. O seu cheiro é doce, completamente diferente das castanhas cruas, cozidas ou assadas e o conforto de sentir a sua secura, dureza e cor amarela forte faz-me sentir bem perto dos que antes o faziam, durante o Inverno só as temos que as demolhar e cozer, desta forma sabemos que não se vão estragar até lá.
O pão de centeio leveda aos poucos ao lado do fogão, não sei bem se é do fermento natural que se propaga dentro de si, mas aqui há toda uma atmosfera que nos liga às origem e nos faz voltar àquele sentimento que vem directo do rés-do-peito, onde assenta o coração.
O Respeito vem com aquele que abranda....
Para as muitas tradições e culturas agrárias ainda ligadas à Terra e que seguem a Roda do Ano, agora finalmente não é preciso desculpas para parar, para olhar de frente os que dividem a casa connosco e o nosso eu mais profundo que emerge neste desacelerar. A ajuda dos nossos antepassados é evocada para que uma melhor condução fosse feita. E é tão difícil o fazermos sozinhos que o auxílio de quem mais experiência tem é fundamental, é como ouvir aqueles conselhos dos avós... Porque quando se envelhece vê-se o mundo com outros olhos e nós, estamos agora um bocadinho mais velhos.
Mas o mundo actual não quer ouvir os mais velhos, não sabe abrandar e entra em vórtices de desrespeito. Pela Terra que usamos como mercadoria, por nós mesmos que nos levamos à exaustão imposta pelo "ter que" do capitalismo desenfreado, pelos mais velhos que são abandonados e descartados, pela exposição da imagem como produto comercial, pela informação que corre e que quer ser constantemente activista para dar nas vistas, pela falta de identidade, pela mera expressão das modas globais, do controle de massas...
Não há nada melhor que o riso e o rezo para restabelecer o respeito. Usamos agora as máscaras que retratam o pior de nós - os nossos demónios - para nos servir de espelho e ajudar-nos a rir do ridículo em que muitas vezes caímos, as travessuras, tudo serve para trazer o riso até cá dentro. Mascaramo-nos também para nos ajudar a tornar real ou visível o que gostaríamos de ser neste novo ciclo, um novo vislumbre de nós mesmos, uma nova versão, actualizada e com mais sabedoria.
Adornamos as nossas ossadas, embelezamos os lugares e aceitamos o pesar como uma passagem bonita e necessária.
Estes tempos, tão bem cronometrados no nosso calendário, são como uma proposta de evolução pessoal e planetária, ficam aqui algumas plantas que nos podem ajudar com a sua presença nesta época de transição, tanto como companheiros de meditação ou contemplação, como convidados de honra nas nossas bebidas, comidas, incensos, sonhos ou vassouras...

Alecrim
Rosmarinus officinalis
O Alecrim é plantado e usado por muitos no entanto esquecemo-nos da capacidade fora do comum que tem em florescer em várias alturas do ano e, agora no nosso jardim ele floresce como se nos desse uma cotovelada e dissesse:
"Ainda estamos aqui para vos reavivar a memória da nossa existência!" .
O seu nome científico Ros-marinus ( Ros - orvalho , marinus - que vem do mar) sempre me despertou bastante curiosidade... Esta substância a que chamamos de orvalho foi desde sempre considerada preciosa por alquimistas e herbalistas pois era considerada a água celestial que aparece do nada, que demonstra de forma física a passagem do escuro da noite até à luz, que reflecte o lunar e incorpora os primeiros raios do Sol, a destilação dos dois mundos.
Se pensarmos que esta planta está tradicionalmente ligada às suas propriedades de estimulação da circulação sanguínea e ao aquecer das extremidades frias dos membros ( mãos e pés) ou ao refrescar da memória para as cabeças cansadas, podemos então perceber que haverá uma ligação íntima ao ser considerada o Orvalho do Mar, ao lembrar a planta que ela própria veio do mar.
É então essa a sua essência, de cada fez que floresce ou quando nos inunda com o seu cheiro actua directamente no nosso sistema límbico e nos reaviva e de que somos na verdade uma linhagem de pessoas em nós, que directamente chamamos de família ou indirectamente ancestrais. Por isso é tão importante como ajudante supremo neste trabalho de rever o ano, neste final de ano Celta, para que possamos fazer o sangue quente chegar com maior eficiência aos cantos que ainda estão frios ou a memórias mais encobertas para que nada seja esquecido.

Verbasco
Verbascum thapsus
Planta bienal de folhas largas, aveludadas e de coloração verde-acinzentada. No primeiro ano mostra somente as suas folhas em forma de roseta junto à terra e no segundo ano hasteia um conjunto incrível de folhas mais diminutas e flores de coloração amarela forte que são usadas como emolientes e expectorantes tal como a doçura e suavidade da planta nos demonstra.
Um dos usos tradicionais desta planta é nos facilmente perceptível pela forma como as flores se demonstram no topo da haste, parece um archote em chamas, e a verdade é que as folhas secas e moídas é um excelente material para começar a aquecer a primeira chispa do fogo por fricção e desde os tempos romanos que esta haste seca embebida em azeite era usada como tocha ou lamparina, que servia para iluminar os caminhos nas noites mais escuras neste descer do sol.
Tal como as archas levadas para cada casa depois da Grande Fogueira de Samaín ou as velas dentro das abóboras esculpidas, esta planta ajuda-nos a iluminar o escuro para que possamos sem medo enfrentar o caminhodesconhecido que aí vem, porque suavemente a luz vai chegando cada vez mais longe.

Salvia-Ananás
Salvia elegans
Planta alta que se distingue facilmente dos outros membros da sua espécie pelo seu aroma a ananás e floração vermelha, quase carmesim mas com um toque rosáceo. Conseguimos destingui-la pelos jardins nesta altura do ano já que as suas flores nos atraem magneticamente pelo seu constraste com o verde-azulado da folhagem e por já serem poucas as flores que se atrevem a abrir.
Tal como as outras sálvias esta transporta o nome latim salvere - estar de boa saúde que nos traz o carácter conhecedor desta planta, em inglês o nome comum mais utilizado é sage que é também sinónimo de uma pessoa que transporta uma enorme sabedoria consigo, os sábios.
" Como pode um homem envelhecer com Salvia no seu jardim?" este provérbio chinês demonstra também a alta consideração que estes lhe ofereciam pelas suas propriedades medicinais como tónico da circulação e nervino que por si só já bastavam, mas também por ser um excelente regulador endócrino e um carminativo de eleição para quem tem dificuldades em digerir e regular absorção de gorduras, pois trabalha directamente com a vesícula biliar.
Esta subespécie elegans orienta-nos pelo seu nome e forma para um reino mais refinado, mais correcto no seu juízo, por isso teríamos nesta planta um poder sábio que elegantemente nos ajuda a tomar decisões que se fundamentam na calma trazida pelo alívio por já não estarmos assoberbados de trabalhos daqueles do "tem que ser". Este agora é um ritual de abrandamento, de passagem.
Giesta - Cytisus scoparius ou Genista scoparius

Esta planta da família das leguminosas ou fabáceas mostra o seu uso mais frequente no seu nome latim scoparius que significa algo semelhante a uma vassoura, e é dos ramos despidos desta planta que comummente se faz vassouras nos locais mais rurais. Por aqui pelo Alto Minho ainda é com frequência que ainda se vê as vassouras de giesta ao lado do fogão a lenha, estas servem para limpar as cinzas e brazas dos fornos quando já estão quentes o suficiente para cozer o pão ou na pedra de chão da lareira.
É um arbusto que cresce facilmente em locais soalheiros, em solos degradados, secos e com tendência a erosão, os numerosos e flexíveis ramos assemelham-se a cabelos ou arames quando estão despidos das suas folhas trifoliadas semelhantes ao trevo, que é da mesma família. É quase sem folhas que a vemos agora, como mostra a fotografia, mas em Maio costumam estar carregadas de flores amarelas e veste-se com o nome popular de Maias. Os ramos floridos são colocados nas entradas das casas no Beltaine, a celebração celta que fica exactamente no polo oposto do Samaín e que se festeja por agora no Hemisfério Sul.
Estamos neste momento a pedir-lhes a sua ajuda nesta limpeza do que não interessa e varrê-lo para fora da nossa casa, o habitáculo que somos e que engloba tantos precisa de ser bem limpo para podermos ter espaço para o que interessa realmente, tal como no hemisfério Sul que estão a ser feitas as limpezas da Primavera.
Ao destralhar conseguimos espaço para ser mais objectivos e lidar com o escuro, o que esta lamacent e nos consome por dentro. Esta é a forma cardio-tónica vista por outro prisma, medicinalmente a Giesta é usada em quantidades minúsculas, pois os constituíntes activos tratam-se de alcalóides potentes e dificil de regular no uso doméstico, estes melhoram a eficiência do batimento cardíaco e a constrição periférica dos vasos sanguíneos, quase como se tivesse a mimicar o "varrer" o que está a bloquear um funcionamento eficaz.
Com a ajuda destas plantas e de tradições como os magustos, que marcam etapas importantes no nosso ciclo solar, podemos sem dúvida ser bem sucedidos neste trabalho de evolução pessoal, para podermos crescer num mundo onde a paz deve prevalecer. Seja através de uma máscara, uma vassoura, uma vela ou uma doação à Terra espero que consigam dar corpo às vossas necessidades de transformação para o novo ciclo.
Vemo-nos em breve, no lado mais escuro do ano. Por nós e pelos nossos.




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